Publicada em 24 de abril de 2024
Civil
O constituinte originário definiu o regime jurídico dos notários e registradores como função estatal, exercida por particular, aprovado em concurso de provas e títulos, sob fiscalização do Poder Judiciário. Porém, delegou a regulamentação da atividade para lei ordinária, que disciplinará seus misteres e a fixará seus deveres e de responsabilidades (Constituição, artigo 236, caput e § 1ª). [1]
O ingresso é democrático, pela via da meritocracia, em concurso público de provas e títulos. Sua elaboração e aplicação se dá por banca presidida por um desembargador e suplente, composta de juízes de direito, registrador e tabelião, com participação do Ministério Público e da Ordem dos Advogados, a fim de garantir ao máximo de lisura e isonomia, isto é, a escolha do melhor candidato (Constituição, artigo 236, § 3º, Lei nº 8.935, de 1994, artigo 15, caput). [2]
Segundo entendimento firmado em controle concentrado de constitucionalidade, cuja relatoria se incumbiu o ex-ministro Carlos Ayres Brito, a Suprema Corte classificou-o como serviço de estatal, não propriamente público, embora não seja prestado pelo Estado diretamente. Isto porque a atividade é exercida em caráter privado, por conta e risco do delegatário. [3]
A partir dos ensinamentos de Vázquez de Mella, o desembargador Ricardo Dip justifica: a outorga de delegações de registros e notas é resultado de uma auctoritas, ou seja, saber reconhecido. Portanto, ele não advém da soberania política, mas sim da soberania social, exercido por pessoa física. [4]
A prestação e responsabilidade é exclusiva do titular, conforme a legislação, no gerenciamento financeiro e administrativo, inclusive perante despesas de custeio, investimento e pessoal, cabendo-lhe estabelecer normas, condições e obrigações, incumbindo-lhe garantir à prestação adequada e eficiente do serviço lhe delegado (Lei nº 8.935, de 1994, artigos 21 e 22). [5]
Delegação de serviços de notas e de registro
O regime de exercício da delegação de serviços de notas e de registro se faz com independência nas atribuições, limitado à lei e normas administrativas das corregedorias do Poder Judiciário, cujos principais deveres se encontram regulados na Lei nº 8.935, de 1994, artigo 30, caput e incisos.
Trata-se de controle finalístico e de legalidade na execução dos serviços, que devem ser adequados, contínuos, regulares, eficientes, gerais, cortês, a oferecer segurança aos usuários. O descumprimento dos deveres lhes imputados pode levar a perda da delegação, sob a fiscalização, em atividade atípica, da autoridade jurisdicional (Lei nº 6.015, de 1973, artigos 8º e 9º; Lei nº 8.935, de 1994) [6].
O exercício da função censório-disciplinar “conforma à tutória do delegante, só pode exercitar-se com espeque na legalidade, já porque assim o reclamam e impõem a independência profissional do registrador, o fim de segurança jurídica perseguido com o registro e o mesmo princípio da legalidade a que se aclima a administração pública”. A fulcro desta moldura legal é, a partir da lei e das normas técnicas administrativa, fiscalizar para que os “serviços sejam prestados com rapidez, qualidade satisfatória e de modo eficiente” — (caput de seu artigo 38 da Lei dos Notários e Registradores). [7]
A utilização do poder regulamentar das Corregedorias Gerais da Justiça, cogente aos titulares de delegação, está subordinada à Constituição e às leis, [8] às realidades econômicas e fáticas presentes ao exercício do munus publicum, nos termos dos artigos 20 e 24 da Lei de Introdução às Normas Brasileiras, inclusão dada pela Lei nº 13.655, de 2018. [9]
De acordo com os juristas, sob a direção de Carlos Ari Sundfeld, que auxiliaram na elaboração do anteprojeto da reforma da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, in verbis:
“Quem decide não pode ser voluntarista, usar meras intuições, improvisar ou se limitar a invocar fórmulas gerais como ‘interesse público’, ‘princípio da moralidade’ e outras. É preciso, com base em dados trazidos ao processo decisório, analisar problemas, opções e consequências reais. Afinal, as decisões estatais de qualquer seara produzem efeitos práticos no mundo e não apenas no plano das ideias.” [10]
Percebe-se, então, que a presença da sujeição especial ao notário e ao registrador quando exercem função, em nome do Estado, aos usuários do serviço; e sujeição geral nas relações travadas para consecução do serviço delegado, seja com prepostos, prestadores de serviço, instituições bancárias, estabelecimentos para aquisição de computadores, acesso à rede mundial de comunicação. Enfim, suprir dos meios para se atingir suas obrigações.
[1] No entendimento da Suprema Corte, o “Regime jurídico dos servidores notariais e de registro. Trata-se de atividades jurídicas que são próprias do Estado, porém exercidas por particulares mediante delegação. Exercidas ou traspassadas, mas não por conduto da concessão ou da permissão, normadas pelo caput do art. 175 da Constituição como instrumentos contratuais de privatização do exercício dessa atividade material (não jurídica) em que se constituem os serviços públicos. A delegação que lhes timbra a funcionalidade não se traduz, por nenhuma forma, em cláusulas contratuais. A sua delegação somente pode recair sobre pessoa natural, e não sobre uma empresa ou pessoa mercantil, visto que de empresa ou pessoa mercantil é que versa a Magna Carta Federal em tema de concessão ou permissão de serviço público.
Para se tornar delegatária do poder público, tal pessoa natural há de ganhar habilitação em concurso público de provas e títulos, e não por adjudicação em processo licitatório, regrado, este, pela Constituição como antecedente necessário do contrato de concessão ou de permissão para o desempenho de serviço público. Cuida-se ainda de atividades estatais cujo exercício privado jaz sob a exclusiva fiscalização do Poder Judiciário, e não sob órgão ou entidade do Poder Executivo, sabido que por órgão ou entidade do Poder Executivo é que se dá a imediata fiscalização das empresas concessionárias ou permissionárias de serviços públicos.
Por órgãos do Poder Judiciário é que se marca a presença do Estado para conferir certeza e liquidez jurídica às relações inter partes, com esta conhecida diferença: o modo usual de atuação do Poder Judiciário se dá sob o signo da contenciosidade, enquanto o invariável modo de atuação das serventias extraforenses não adentra essa delicada esfera da litigiosidade entre sujeitos de direito. Enfim, as atividades notariais e de registro não se inscrevem no âmbito das remuneráveis por tarifa ou preço público, mas no círculo das que se pautam por uma tabela de emolumentos, jungidos esses a normas gerais que se editam por lei necessariamente federal. (…)
[ADI 2.415, rel. min. Ayres Britto, j. 10-11-2011, P, DJE de 9-2-2012.]
[2] Segundo jurisprudência da Corte Constitucional, “Serventias judiciais e extrajudiciais. Concurso público: arts. 37, II, e 236, § 3º, da CF. Ação direta de inconstitucionalidade do art. 14 do ADCT da Constituição do Estado de Santa Catarina, de 5-10-1989, que diz: “Fica assegurada aos substitutos das serventias, na vacância, a efetivação no cargo de titular, desde que, investidos na forma da lei, estejam em efetivo exercício, pelo prazo de três anos, na mesma serventia, na data da promulgação da Constituição”. É inconstitucional esse dispositivo por violar o princípio que exige concurso público de provas ou de provas e títulos, para a investidura em cargo público, como é o caso do titular de serventias judiciais (art. 37, II, da CF), e também para o ingresso na atividade notarial e de registro (art. 236, § 3º).[ADI 363, rel. min. Sydney Sanches, j. 15-2-1996, P, DJ de 3-5-1996.]. Cita-se também: AI 719.760 AgR, rel. min. Gilmar Mendes, j. 16-11-2010, 2ª T, DJE de 1º-12-2010; AI 541.408 AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, j. 23-6-2009, 1ª T, DJE de 14-8-2009; RE 182.641, rel. min. Octavio Gallotti, j. 22-8-1995, 1ª T, DJ de 15-3-1996.
[3] Numa frase, então, serviços notariais e de registro são típicas atividades estatais, mas não são serviços públicos, propriamente. Inscrevem-se, isto sim, entre as atividades tidas como função pública lato sensu, a exemplo das funções de legislação, diplomacia, defesa nacional, segurança pública, trânsito, controle externo e tantos outros cometimentos que, nem por ser de exclusivo domínio estatal, passam a se confundir com serviço público (g.n.).[ADI 3.643, voto do rel. min. Ayres Britto, j. 8-11-2006, P, DJ de 16-2-2007.]
[4] DIP, Ricardo Marques. Registro sobre registros, n. 9: Princípio da independência jurídica do registrador – Parte terceira. Publicado pela Uniregistral. Vide: http://ead.uniregistral.com.br/index.php?option=com_joomdle&view=wrapper&moodle_page_type=course&id=2&Itemid=281; consultado em 24/06/2020, às 08:34 horas.
[5][5] Estranhamente, em recente decisão o Supremo Tribunal Federal contrariou à jurisprudência majoritária dos Tribunais. Entendia-se ser incidente aos serviços exercidos por notários e registradores, no âmbito civil, a responsabilidade em espécie objetiva e direta. Esta era a opção adequada ao regime proposto pelo legislador constituinte. Todavia, decidiu-se que o Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa. [RE 842.846, rel. min. Luiz Fux, j. 27-2-2019, P, DJE de 13-8-2019, Tema 777.]
O professor Celso Antônio Bandeira de Mello explica que há duas ordens de interesses que se devem compor na relação em apreço. O interesse público, curado pela Administração, reclama dele flexibilidade suficiente para atendimento das vicissitudes administrativas e variações a que está sujeito. O interesse particular postula suprimento de uma legítima pretensão ao lucro extraível do desemprenho da atividade em apreço, segundo os termos que as vinham regendo ao tempo do travamento do vínculo. Daí, que se defere a cada qual o que busca no negócio jurídico. Nem faria sentido conceder-lhes ou mais ou menos que o necessário à satisfação dos fins perseguidos. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Parecer elaborado para Anoreg-SP. 10.07.2009, consulta em 23.06.2020, às 11:55 horas
Fonte: Conjur
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