Publicada em 18 de junho de 2024
1. Uma reforma dirigida por vetores estruturais
O mister de revisão da codificação civil não se realiza de modo aleatório. Propor a atualização da norma que rege a vida privada pressupõe consciência dos vetores estruturantes de cada parte do Código Civil, e da relação entre estes e os alicerces sobre os quais se erige a codificação, de modo a assegurar a unidade sua sistemática. Foi essa a tarefa realizada pela Comissão nomeada pelo Senado Federal para a elaboração do Anteprojeto de Revisão e Atualização do Código Civil.
A subcomissão de contratos (composta pelas Professoras Angélica Carlini, Claudia Lima Marques, pelo Professor Carlos Eduardo Elias e pelo subscritor deste texto) e a relatoria geral (integrada pela Professora Rosa Nery e pelo professor Flávio Tartuce) dirigiram a elaboração da proposta, debatida e aprovada pela Comissão, à luz de quatro vetores fundamentais. São eles: (a) aprofundamento da autonomia privada e da força obrigatória em contratos paritários, de modo coerente com as alterações operadas pela Lei da Liberdade Econômica, da qual derivam a excepcionalidade da revisão contratual e o respeito à alocação de riscos definida pelas partes; (b) aperfeiçoamento da disciplina da dimensão funcional dos contratos, não apenas no que tange à sua função social, mas, também, à função econômica derivada das escolhas das partes, em reforço à ratio da obrigação como processo; (c) incremento da confiança legítima por meio da boa-fé, seja na positivação de sua aplicação as diversas fases do processo obrigacional, seja pela afirmação de seu caráter de ordem pública; (d) modernização e aperfeiçoamento das regras gerais sobre direito contratual e dos contratos em espécie, em linha com as premissas assentadas nos vetores antes enunciados.
De modo coerente com esses vetores, a Comissão se pautou na construção jurisprudencial consolidada, na doutrina cristalizada (especialmente nos enunciados das Jornadas de Direito Civil do CJF), e se inspirou em exemplos exitosos de ordenamentos estrangeiros, e de soft law, ainda que sem cópia servil das regras alienígenas – aqui, o cuidado foi recolher a experiência estrangeira, e adaptá-la à tradição e às necessidades próprias do Direito brasileiro.
Passo, em síntese, a apontar como o Anteprojeto apresentado ao Senado Federal contempla esses vetores.
2. Liberdade Econômica e força obrigatória
A disciplina do Direito Contratual no Código Civil sofreu relevantes alterações derivadas da Lei da Liberdade Econômica, que buscou equilibrar o sentido de socialidade1 que permeava a redação original do Código Civil, aprovada em 2002, e o valor social intrínseco da livre iniciativa, assegurando a higidez do exercício da autonomia privada em contratos paritários, sejam eles civis ou empresariais
Na mesma lei, foi explicitada (porque já inerente ao sistema, pautado na livre iniciativa constitucional) a norma que assegura a intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.
O Anteprojeto de Revisão do Código Civil singra esse itinerário apontado pela legislação vigente, para aprofundar aquilo que decorreu da Lei de Liberdade Econômica quanto à ampliação da autonomia privada e a garantia da força obrigatória dos contratos.
Não se ocupa o Anteprojeto das relações de consumo, nem se orienta pela racionalidade que a elas é própria, e que é preservada sob a regência da lei especial (art. 421-A do Anteprojeto).
A proposta de revisão amplia os mecanismos que favorecem a prevalência da autonomia privada nos contratos paritários, com o incremento do espaço de escolhas dos contratantes, bem como aperfeiçoando as regras pertinentes a figuras jurídicas destinadas a reforçar a obrigatoriedade dos contratos.
Esses comandos vêm em linha com a declaração de direitos de liberdade econômica, especialmente o inciso VIII do artigo 3º, que dispõe ser direito de toda pessoa natural ou jurídica, em conformidade com o art. 170 da Constituição, “ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública”.
Mantêm-se, pois, as previsões sobre os princípios da intervenção mínima e excepcionalidade da revisão contratual nos contratos paritários, com redação congruente com o dispositivo acima citado.
Há, também a integral conservação da regra que prevê a presunção de paridade e simetria tanto dos contratos empresariais como dos contratos civis (art. 421-C do Anteprojeto), que somente pode ser afastada mediante a presença de elementos objetivos.
Trata-se de expressão, a rigor, de uma dimensão funcional mais ampla, que permeia os institutos fundamentais de direito privado, e que permite afirmar que a sua disciplina jurídica tem por função prima facie propiciar, como contributos, o exercício, a conservação e o incremento de liberdades.
Em contratos paritários e simétricos, a liberdade substancial2 para a realização de escolhas pelas partes está presente, a legitimar a sua chancela, como expressão da liberdade positiva3 dos particulares, em um espaço de não coerção (liberdade negativa)4. Daí porque, mantendo-se hígida a presunção legal de paridade e simetria, dados espaços de coerção são mitigados pelo Anteprojeto, ampliando-se, assim, o âmbito de exercício do poder de escolha das partes, bem como sua força jurígena (ou seja, geradora de normas pelos particulares para as suas próprias esferas jurídicas).
O contrato paritário, ou seja, aquele que não é de adesão5, contém em si presunção de liberdade substancial das partes que justifica, de per se, a imposição de auto-limitação por parte do juiz (intervenção mínima) e, por consequência, a excepcionalidade da revisão contratual.
A presença, adicionalmente, da simetria (ou seja, a ausência de relação de dependência entre de um contratante frente ao outro), justifica ampliação dos espaços livres de coerção. As assimetrias que afastam a presunção legal precisam ser suficientemente relevantes, de modo a se constituírem como grave déficit concreto de liberdade substancial (ou seja, da possibilidade concreta de fazer escolhas valorosas), a ponto de ensejarem verdadeira relação de dependência de um contratante frente ao outro. Não é qualquer disparidade econômica ou informacional que afeta de modo relevante a possibilidade concreta de realizar escolhas.
Tudo isso vem em suporte aos pilares sobre os quais se erige a força obrigatória dos contratos, quais sejam, o valor jurídico da promessa, como expressão jurígena advinda do exercício da liberdade, e a tutela da confiança legítima.
Quanto à ampliação dos espaços de liberdade econômica, alguns relevantes exemplos podem ser citados – integrando, também, o vetor de modernização e aperfeiçoamento das regras sobre direito contratual:
– O parágrafo 1º do art. 421-C do anteprojeto traz regras interpretativas especiais aos contratos empresariais, podendo-se citar como exemplos o emprego dos “usos e dos costumes do lugar de sua celebração e do modo comum adotado pelos empresários para a celebração e para a execução daquele específico tipo contratual” e o reconhecimento da atipicidade legal inerente a boa parte dos contratos empresariais, a determinar, como consequência, a prevalência do livremente pactuado;
– Os incisos IV e V do art. 421-D admitem, em contratos que não sejam de adesão (ou seja, paritários), que as partes pactuem glossário para a definição consensual dos termos empregados no contrato, bem como definam critérios de interpretação da lei, quando esta puder gerar controvérsias;
– Reforço à obrigatoriedade da observância da alocação de riscos definida pelas partes, inclusive como limitadora da revisão contratual por fatos supervenientes, consoante o parágrafo 1º do art. 478;
– Remissão, no artigo 421-F, aos princípios do Direito de Empresa (art. 966-A), como aplicáveis aos contratos empresariais, deixando explícita a “força obrigatória das convenções, desde que não violem normas de ordem pública”;
– Aperfeiçoamento da disciplina dos vícios ocultos, ampliando prazos de garantia, em proveito do credor e do bom adimplemento contratual, oferecendo ao credor, além dos direitos à redibição e ao abatimento do preço, a possibilidade de exigir saneamento do vício, mediante custeio de reparos
– Aperfeiçoamento das regras sobre exceção de inseguridade, sob inspiração, especialmente, da CISG, substituindo a necessidade de prova sobre diminuição patrimonial pela demonstração de “grave insuficiência em sua capacidade de cumprir as obrigações” (art. 477), assegurando ao credor, ainda, a resolução antecipada da avença quando “o devedor não satisfizer a prestação devida nem oferecer garantia bastante de satisfazê-la após interpelação judicial ou extrajudicial”6;
– Previsão sobre a possibilidade de resolução antecipada, independentemente da exceção de inseguridade, quando “antes de a obrigação tornar-se exigível, houver evidentes elementos indicativos da impossibilidade do cumprimento da obrigação”. A regra (art. 477-A), inspirada na CISG e no BGB, visa a reforçar a obrigatoriedade dos contratos.
– Construção de mecanismo de revisão e resolução contratual7 por fatos supervenientes (art. 478 e 479) que acolhe o conceito técnico de “circunstâncias objetivas que serviram de fundamento para a celebração do contrato”, (Grundlage)8 sem, contudo, dispensar a necessidade de demonstração da imprevisibilidade (aferível em concreto, conforme a “qualificação da parte prejudicada pela onerosidade excessiva e diante das circunstâncias presentes no momento da contratação). Além disso, o mesmo dispositivo projetado exige que a alteração de circunstâncias exceda os riscos normais do negócio, deixando claro que “para a identificação dos riscos normais da contratação, deve-se considerar a sua alocação, originalmente pactuada”, o que pretende assegurar o caráter excepcional da revisão contratual por fatos supervenientes, limitando-a ao necessário para “mitigar a onerosidade excessiva, observadas a boa-fé, a alocação de riscos originalmente pactuada pelas partes e a ausência de sacrifício excessivo às partes”;
– Prevalência daquilo que for livremente pactuado em contratos de seguro de grandes riscos (art. 757-A);
– Possibilidade de as partes afastarem a regra de revisão contratual por redução de preços de mão de obra e materiais nos contratos de empreitada paritários e simétricos (art. 620, parágrafo único);
– Validade da cláusula de limitação ou de exclusão da responsabilidade do depositário, desde que em contrato paritário e simétrico (art. 629, parágrafo único);
A unidade sistemática que se dirige pelos vetores aqui explicitados se revela também no fato de que as subcomissões de Obrigações, de Responsabilidade Civil e de Direito das Coisas caminharam pela mesma senda, propondo regras que se coadunam com a garantia da força jurígena da autonomia privada e, por consequência, com a força obrigatória dos contratos. Não por acaso, as propostas foram acolhidas pela Relatoria-Geral e aprovadas pelos demais membros da Comissão.
São exemplos disso, sempre em contratos paritários e simétricos: (a) a proposta de nova redação ao parágrafo único do art. 413, formulada pela subcomissão de obrigações, que veda ao juiz, nos contratos paritários e simétricos, proceder à redução da cláusula penal sob o fundamento de ser ela excessiva; bem como (b) a autorização para a pactuação de cláusulas de não indenizar e de limitação do dever de indenizar, proposta pela subcomissão de responsabilidade civil (parágrafo único do art. 629); (c) a possibilidade de celebração do pacto marciano, conforme o projetado parágrafo 1º do art. 1.4289.
3. Aperfeiçoamento da Dimensão Funcional
A autonomia privada, bem como a liberdade contratual e a liberdade de contratar, advêm do princípio da livre iniciativa, cuja base constitucional se assenta nos arts. 1º, inciso IV e 170 da Constituição. O valor social intrínseco da livre iniciativa e do trabalho é afirmado como fundamento da República (ou seja, há o reconhecimento de que a livre iniciativa é socialmente valorosa de per se). Por isso, livre iniciativa é também fundamento da ordem econômica (art. 170 da Constituição)10.
Como a livre iniciativa já é dotada de valor social intrínseco, a norma não atribui a ela uma função social – enquanto o valor é algo inerente ao ser, a função é algo que se acresce a dado instituto, como contributo/prestação cuja realização é devida, por força da norma (dever-ser).
Assim, o que é dotado de função social não é a liberdade, mas, sim, os instrumentos para o seu exercício (propriedade e contrato) que, com base na correta leitura do art. 170 da Constituição, são funcionalizados.
Daí a manutenção, na Lei da Liberdade Econômica, não apenas do princípio da função social do contrato, mas do seu caráter limitador da liberdade contratual, o que se conserva no Anteprojeto – restando, por força da referida lei, afastada a previsão original de que a liberdade de contratar seria exercida “em razão” da função social do contrato, regra que padecia de inconstitucionalidade, haja vista o caráter jusfundamental da própria autonomia privada11.
O Anteprojeto de Código Civil preserva, como não poderia deixar de ser, a função social do contrato, explicitando, no parágrafo 2º do artigo 421, algo que já decorre dos comandos do caput do artigo 421 e do art. 2.035 vigentes: “A cláusula contratual que violar a função social do contrato é nula de pleno direito”.12
Deixa claro, ainda, que a aferição das funções dos contratos deve levar em consideração os diferentes tipos contratuais, reconhecendo que as funções realizadas por contratos empresariais, que dizem respeito a “bens e serviços ligados à atividade de produção e de intermediação das cadeias produtivas”, não se confundem com aquelas próprias aos contratos de consumo, contratos de trabalho, ou contratos civis, cada qual merecendo tratamento próprio.
Quando o Anteprojeto se refere a “funções”, no plural, está a tratar não apenas da função social, mas, também, da função econômica.
Enquanto a função social decorre da norma, a função econômica decorre da liberdade das partes na realização da operação econômica13 que receberá as vestes jurídicas do contrato como instituto, sendo apreendida ex post pelo direito.
Essa função econômica é de extrema importância, pois diz respeito às necessidades concretas perseguidas pelos agentes econômicos por meio do contrato. O bom adimplemento é aquele no qual as prestações são também realizadas de modo a propiciar a realização do contributo econômico almejado pelos contratantes, e que se afere por meio da própria operação econômica, tomada em sua concretude.
O Anteprojeto trilha caminho coerente com o sentido da obrigação como processo, preconizado por Clóvis do Couto e Silva14.
A dimensão funcional é, também, essencial para a identificação das hipóteses de coligação contratual, consoante proposto na redação do art. 421-E.
A função econômica, ao lado da função social, é empregada no Anteprojeto para permitir a aferição da essencialidade da parte perdida para a qualificação da evicção parcial como considerável (parágrafo único do artigo 461).
Também é a função econômica, no Anteprojeto, um limite à revisão contratual por fatos supervenientes (arts. 478 e 479, inciso I). Ela também exerce papel relevante como um dos critérios qualitativos para determinar a viabilidade ou não do reconhecimento do adimplemento substancial (art. 475-A, inciso IV).
Propõe-se, também como expressão do aperfeiçoamento da expressão funcional dos contratos, a positivação da figura da frustação da finalidade do contrato, quando, “por fatos supervenientes”, “deixa de existir o fim comum que justificou a contratação, desde que isso ocorra por motivos alheios ao controle das partes e não integre os riscos normais do negócio ou os que tenham sido alocados pelas partes no momento da celebração do contrato”. A função econômica definida pelas próprias partes é, aqui, novamente, contemplada pelo Anteprojeto.
4. Boa-fé e confiança legítima
O Anteprojeto, na perspectiva dos deveres anexos, dispõe expressamente sobre aquilo que já estava consolidado na doutrina e na jurisprudência, quanto à incidência do princípio da boa-fé nas fases pré e pós contratual. Nesse sentido, ao artigo 422, na norma projetada, passa a dispor que “os contratantes são obrigados a guardar os princípios da probidade e da boa-fé nas tratativas iniciais, na conclusão e na execução do contrato, bem como na fase de sua eficácia pós-contratual.”
O Anteprojeto também qualifica a violação da boa-fé como inadimplemento (art. 422-A). Com efeito, ela integra o conjunto de deveres contratuais, sendo certo que o respeito à força obrigatória dos contratos passa por assegurar o cumprimento, também, dos deveres laterais, em harmonia com os deveres de prestação.
A Lei da Liberdade econômica já havia reforçado o papel hermenêutico da boa-fé e da confiança legítima, mediante as alterações promovidas no artigo 113 do Código Civil especial seu parágrafo 1º.
O anteprojeto, especificamente no âmbito dos contratos empresariais, reforça essa função hermenêutica da boa-fé, com o necessário esclarecimento de que aplicação do princípio, nesses contratos, demanda critérios de densificação coerentes com o que se pode compreender como confiança legítima nas relações entre profissionais, que exige, por evidente, juízos de autorresponsabilidade. É por isso que o projetado inciso II do art. 421-C dispõe que o atendimento à boa-fé objetiva nos contratos empresariais também se mede “pela expectativa comum que os agentes do setor econômico de atividade dos contratantes têm, quanto à natureza do negócio celebrado e quanto ao comportamento leal esperado de cada parte”.15
A boa-fé é, também, limite ao exercício de posições jurídicas. Um exemplo disso, no Anteprojeto, é o inciso II do parágrafo único do art. 479, que limita o direito à revisão contratual por meio da boa-fé.
No âmbito dos contratos em espécie, destaca-se o disposto na disciplina do contrato de prestação de serviços e de acesso a conteúdos digitais, permeado pela função integrativa da boa-fé, a dirigir, por exemplo, o emprego da inteligência artificial na prestação de serviço digital (art. 609-F) e as atividades dos “prestadores de serviços e de conteúdos digitais, em especial os de intermediação e de busca na internet” (art. 609-B).
Também se pode citar, a título exemplificativo, a disciplina projetada para os contratos de seguro, com especial ênfase aos deveres de boa-fé nos artigos 765, 771-D.
5. Notas conclusivas
Pretendeu-se, neste texto, mediante um vol d’oiseau, oferecer uma visão panorâmica dos vetores da proposta de Revisão do Código Civil em matéria contratual.
Esperamos que o trabalho submetido à apreciação do Congresso Nacional tenha o condão de atender à necessidade de assegurar a manutenção da relevância normativa do Código Civil como norma geral, evitando sua obsolescência16, e primando pela segurança jurídica.
Fonte: Migalhas
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